AUGUSTO GIL MUSA CERULA AUGUSTO GIL MUSA CERULA COIMBRA LIVRARIA PORTUGUEZA E ESTRANGEIRA DO EDITOR MANUEL D'ALMEIDA CABRAL 165--R. Ferreira Borges--165 1894. AUGUSTO GIL MUSA CERULA COIMBRA LIVRARIA PORTUGUEZA E ESTRANGEIRA DO EDITOR MANUEL D'ALMEIDA CABRAL 165--R. Ferreira Borges--165 1894. MUSA CERULA _1891-93._ _Honorate l'altissimo poeta_ A João de Deus ... Quando lerdes Entendei que segundo o amor tiverdes Tereis o entendimento dos meus versos. _Camões._ O sentimentalismo constitue a Arte. _Taine._ Para fielmente contar o que sinceramente sente, não são necessarias ao poeta essas fórmas novas que devem rutilar de inauditismo. ......................................... Ao assenhorear-se d'ella sentiria sem duvida o embaraço de quem, para beber agua de um regato, n'uma sesta de verão, tivesse de usar um pesado calice do seculo XVII, todo de oiro, cravejado de pedras, tirado de um museu de artes decorativas................... _Eça._ Almas irmãs da minha, a vós dedico e offerto Este livro d'amor--meu coração aberto. Folhas soltas ao ar na alegre revoada De pombas a fugir no azul d'uma alvorada. Com ellas vejo ir pela amplitude calma Pedaços do meu sêr, pedaços da minh'alma: É tudo o que eu cantei de idyllico e olorante, Desde o ceruleo olhar da minha terna amante Até á coma edeal da minha sancta mãe, Alva como um lilaz, branca como a cecem. Almas irmãs da minha, a vós dedico e offerto Este livro d'amor--meu coração aberto. Profissão de fé Não vão pensar que a minha musa seja Alguma apparição allucinante De olhar azul e labios de cereja, Diadema d'oiro e espada flammejante. A musa protectora d'estes versos Detesta a rima altiva dos pamphletos, Educa-me em principios bem diversos: --Lê-me Petrarcha, o mestre dos sonetos. Não me ensina a cantar imprecações Contra as torpes gangrenas mundanaes, Inspira-me sómente estas canções Que vos fallam d'amor--e nada mais. Apostolo do Bello e da Bondade, Ella anda a propagar por toda a parte, Ás almas auroreaes da mocidade, A nova religião chamada--Arte. Consagra um culto fervoroso e santo Aos sentimentos bons, ás coisas mansas. Respeita a Dor nas lagrimas do pranto, Adora a Paz nos risos das creanças. Por alta noite, quando a evoco e chamo, Segreda-me ao ouvido brandamente, Qual brisa leve a prepassar n'um ramo: _Traduz em verso o que a tua alma sente._ _Canta os sorrisos, canta as amarguras Dos teus vinte e dois annos incompletos. Faz d'elles um collar d'estrophes puras, Faz d'elles um rosario de sonetos._ ........................................ ........................................ Já vêem, pois, que a minha musa é calma: E agora, se quizerem lêr sem pressa, Verão que em cada estrophe vae impressa Uma affecção diversa da minh'alma. A minha mãe As illusões semelham-se a um collar De perolas alvissimas, de espuma. Se o fio que as segura se quebrar, Cahem no chão, dispersas, uma a uma. Cahem no chão, dispersas, uma a uma, Se o fio que as segura se quebrar; Mas entre tantas sempre fica alguma, Sempre alguma suspensa ha de ficar. D'as minhas illusões, dos meus affectos, Longo collar de amores predilectos, Muitos rolaram já no pó tambem. Um só d'entre elles não cahirá jámais: Aquelle que eu mais préso entre os demais. --O teu amor sanctissimo de mãe. Impressões d'ella I Os labios são dois imans de desejos. A bocca, então, é calix de venenos Com infusão de beijos. Eu, se o mortal licor provasse ao menos Alguma vez sómente, Envolto já nas sombras da agonia Ainda um beijo mais lhe pediria --Para morrer contente... II A voz tem a dolente melopeia Que Dom Juan tirava á guitarrilha, Á luz da lua cheia Nas ruas de Sevilha; Tem os enervamentos do Falerno E a attracção da musica d'Orpheu; Se a ouvisse, o inferno --Tornava-se n'um ceu. III Os olhos não são olhos, são punhaes. E tanto mais me fita, quanto mais Os crava no meu peito; Comtudo heide dizer-lhe:--«Oh minha amada Desfia-o, fibra a fibra, á punhalada Que morro satisfeito!»... O matrimonio De banza a tiracollo e capa á trovador, Eu nunca fui cantar endeixas amorosas, Lyrismos de Romeu junto aos balcões em flor, Por sob o luar dormente e as nuvens vaporosas. Tão pouco tenho a linha airosa, aristocrata, Da fina flor do tom, os dandys adamados Que andam pelos salões, monoculando, á cata D'um dote que lhes salve a pança de cuidados. Tenho, como qualquer, a aspiração ideal D'uma noiva gentil, d'um ninho conjugal; Mas tudo se desfaz se penso um só momento N'este quadro banal, depois do casamento: O sogro, a sogra, a esposa, um filho já taludo E eu, muito aborrecido... a olhar p'ra aquillo tudo. Dolorosa Deitada sobre o esquife funerario E vista á chamma trémula dos cirios, Tinha a alvura das hostias do sacrario E a pallidez suavissima dos lirios. No seu rosto gentil e sorridente Havia a languidez da pomba mansa. Parecia dormir serenamente, Immersa em vagos sonhos de creança. Annos passaram desde que morreu; Comtudo vibra intensa no meu ser, A sensação do beijo que me deu Poucos momentos antes de morrer. E julgo vel-a ainda á luz dos cirios, Deitada sobre o esquife funerario, Mais pallida que as petalas dos lirios, Mais branca do que as hostias do sacrario. Sonho de nupcias Eu punha no teu labio a nota quente A musica vibrante dos desejos, Poisava-te no collo branco, ardente, O poema rendilhado dos meus beijos. Ao intimo contacto d'esses beijos, Erguia-se em volutas de serpente A curva delicada, alvinitente, Das tuas fórmas, tremulas de pejos. Senti então, allucinado e mudo, O élo dos teus braços de velludo Cingir-me contra a carne feiticeira. E sobre o veu de gaze delicado, Murchavam na capella do noivado Os albentes botões da laranjeira... Serenata (A UMA VIZINHA) Vae serena, desmaiada, Entornando luar no azul, A lua, taça quebrada Dos festins do rei de Thule. As estrellas maceradas São como beijos de luz, Ou lagrimas condensadas Do martyrio de Jesus. Serena como uma prece, Cariciosa como um ninho, A via-lactea parece Estrada feita de arminho. Estrada feita de arminho E flocos alvinitentes, Que talvez seja o caminho Para a morada dos crentes. Curvam-se os lirios abertos, Escutando o som da aragem, E os rouxinoes dão concertos Sob as folhas da ramagem. Na atmosphera encantada Anda a vibrar soluçante A voz doce e requebrada D'um bandolim tremulante. Oh dona de olhos sensuaes --Olha o luar tão bonito! Façamos os esponsaes Do nosso amor infinito. Vamos vibrar os harpejos D'uma serenata louca. As notas, serão meus beijos E a guitarra... a tua bocca. A Alberto de Oliveira (IMPRESSÃO DA BIBLIA DO SONHO) Emquanto os outros vão, ao som das guitarradas, Capas a desfiar, batinas sem botões, Entre explosões joviaes de intensas gargalhadas, Cantando alegremente eroticas canções, Elle despresa a vida, o riso, os corações E n'um mystico horror d'almas fanatisadas, Foge do mundo e vae, á busca de illusões, Em frageis bergantins de velas enfunadas. Talento peregrino o seu ideal recorda Um extasis de monja em frente d'um altar, Á hora em que o sol morre e a lua meiga acorda. E o seu verso dolente evoca dentro em mim: Ao longe, muito ao longe, á branca luz do luar, Os tremulantes sons d'ignoto bandolim... Perdularia (A PIO CAVALHEIRO) Passou junto de nós, pedindo esmola, Uma creança rota, magra, invalida. Deitaste-lhe dinheiro na sacola, Beijaste-lhe em seguida a face pallida. Que feliz foi o pobre da sacola! O seu desejo era bem mais modesto. Podias dar-lhe unicamente a esmola E a mim--dares-me o resto... Em wagon A chaminé vomita fumarada. A machina assobia: parto emfim. Na _gare_, ao longe, a minha namorada Agita o lenço branco para mim. Como rectas traçadas a namkim, Sobre um fundo ceruleo de aguada, Vejo no espaço nitidas, assim, As linhas telegraphicas da estrada. O sol, hostia de luz resplandecente, Vae-se elevando gloriosamente Na abobada vastissima dos ceus E dois choupos batidos pelo vento Curvam-se num ligeiro cumprimento, Cerimoniosos, a dizer-me adeus... Blasphemia santa Jurou-me eterno amor. A noite ia cahindo. E, entre outras phantasias, Eu disse-lhe sorrindo: Se Deus surgisse agora, aqui, perante nós O que é que lhe dizias? --Que nos deixasse sós... Á sobremesa _Variação sobre um Thema de Heine_ (A EGAS MONIZ) Na sala de jantar da baroneza A conversa cahira mollemente, E um creado esguio, sorridente, Trazia sobremeza. Os commensaes fallavam sobre a vida. --Viver é ir morrendo lentamente-- Dizia suspirando, em voz sentida. Um lyrico doente. A vida, accrescentou, volvendo os olhos, Um bacharel vermelho, de melenas: --É um jardim de lirios e de abrolhos De cardos e verbenas... Continuou depois solemnemente Um outro, litterato, de lunetas, Com fama de escriptor intelligente, Auctor de varias tretas: --A vida é a viagem d'alguns dias: Uns seguem n'ella a estrada dos revezes, Outros a do prazer. As duas vias Encontram-se por vezes... O barão quasi calvo, de olhar vago, Disse a sorrir, curvado na cadeira: --A vida é isto. E despejou d'um trago Um calix de Madeira. Ao fundo, um par de jovens namorados Fazia brindes intimos de amor E a digestão punha nos convidados Um languido torpor. Ouviu-se então, em voz de confidencia, Dizer á baroneza um titular: --Minha Senhora, creia-me Vocencia, A vida--é esse olhar... Carmen Sobre as dobras rendadas da mantilha Brilham-te, como soes em pleno dia, Os olhos mais galantes de Sevilha Na fronte mais gentil d'Andaluzia. A tua voz ao som da guitarrilha Tem vibrações extranhas d'harmonia. Ninguem canta melhor a seguidilha N'esse paiz do Amor e da Alegria. Nas voltas caprichosas do _bolero_ Não tens rival em graça e em _salero_ Carmen gentil, oh flôr das hispanholas! Tu fazes-me o effeito inebriante Dos vinhos de Xerez e de Alicante Quando bailas ao som das castanholas! Fervet amor A conversa cahiu no casamento. E defronte de nós, n'esse momento, Noivava um par alegre de pardaes. Ruborisada, attenta, olhaste os dois. Em que meditas? disse, e tu depois, Baixando o doce olhar--coraste mais. Cantares (A RAMIRO DE FIGUEIREDO) A triste viuvez tua, Creança de olhos suaves, Lembra-me as noites sem lua, Lembra-me os ninhos sem aves. Tão bonita e sem amores, Á minha mente recordas Uma jarra sem ter flores Um bandolim sem ter cordas. Oh meiga rôla sem par, Á phantasia revelas Uma barca em pleno mar Sem ter leme e sem ter velas. Moreninha idolatrada Que o loiro Amor não seduz, És como estrella apagada És como um astro sem luz; És como um cofre doirado Cheio de gemas d'Ophir, Por tal maneira fechado Que ninguem o possa abrir. Oh virgem de negra coma, Oh minha doce gazella, És como flor sem aroma Como moldura sem tela, Galathea que amo tanto, Meu amor, peccados meus, És um altar sem ter sancto --Um paraizo sem Deus! Senhor Doutor Não ha quem endoide as moças Como os olhos d'um doutor. (_Cantiga coimbrã_). Houve na aldeia viva sensação Ao regressar o filho do morgado, Que fôra para Coimbra de calção E vinha agora bacharel formado. Vae longe, olé, bradava o vozeirão Do abbade. É só fazel-o deputado. E as moças entre si: Que rapagão!... ... Doutor, tão novo... Deus seja louvado... Chegou a casa e n'esse mesmo dia, Foi visitar radioso de alegria A filha da velhota que o creou. E visitou-a tanto e tantas vezes Que quando decorreram nove mezes --O morgado da aldeia... era avô. Ritornello (A ALBERTO REGO) I O seu cabello loiro E o perturbante olhar Dos grandes olhos pretos Serão a chave d'oiro Com que eu hei de fechar Um livro de sonetos. II Posta a gravata branca E de casaca preta, N'uma attitude franca, Sem venias d'etiqueta, Ler-lhe-hei um dos sonetos Fechado a chave d'oiro Feito aos seus olhos pretos E ao seu cabello loiro. III Á nobre cortezã Ha de mover, por certo, O extranho talisman Do livro que lhe offerto. Que p'ra inspirar amor A uns taes olhos pretos Não ha philtro melhor Que um livro de sonetos... Esboceto (A PEREIRA BARATA) Como uma semi-tinta de aguarella, Côa-se a luz, dulcissima, velada Atravez das persianas da janella, Sobre a pequena sala alcatifada. N'um cavallete, apenas debuxada, A tons ceruleos, sobre larga tela, Uma marina calma, socegada, Com botes de pescar, vogando á vela. Sobre a meza rodeada de cadeiras, Destaca, entre revistas estrangeiras, Um busto de mulher adolescente E a brancura leitosa do teclado Põe no piano, entreaberto, ao lado, Um ar de monstro, arreganhando o dente. Consummatum est! Amei-a muito, é certo. Amei-a com o louco E desvairado amor d'alguem que nunca amou. Por isso que a amei tanto é que a amei por tão pouco. --Escusa de insistir. O meu amor findou. Como um perfume leve que pelo ar se expande, Assim esta paixão ardente se evolou. Já nada resta agora d'esse amor tão grande. --Escusa de insistir. O meu amor findou. Hontem, ao lêr o meu bilhete quasi em branco, Laconico e conciso, dizem que chorou, Talvez fosse cruel, mas creia que fui franco. --Escusa de insistir. O meu amor findou. I N'uma gaveta, entre papeis dispersos, Encontrei, por acaso, n'outro dia, Os meus primeiros versos Singellos de harmonia. Pobres de rima e cristallinos sons, Mas cheios d'uma doce ingenuidade, Que os torna, na verdade, Sympathicos e bons. Minha sincera e dedicada amiga. Meu doce amor e minha aspiração, Como tributo de amisade antiga, Deponho na tua mão, Apenas retocadas, Estas simples estrophes desmaiadas, Para que vejas como os desenganos Mataram, dia a dia e hora a hora, As santas illusões dos meus quinze annos Que inutilmente invoco e chamo agora... II Oração Outomno. Morre o dia. Cae sobre as coisas placidas e calmas Um véo de sombra e de melancolia Que dulcifica e embrandece as almas. Todo o meu sêr se invade De enervantes e mysticas doçuras, De mansidão, de paz, de suavidade, De sentimentos bons, de ideias puras. No coração prepassa Uma piedade e compaixão serena Por todos os validos da desgraça, Por tudo quanto soffre e quanto pena: Pelos pequenos entes Sem abrigo, sem lar e sem carinho, Que são como avesinhas innocentes Postas por mão cruel fóra do ninho; Pelos encarcerados Que lançam, d'entre as grades da cadeia, Ao ar, á luz, aos montes afastados A vista afflicta e de amarguras cheia; Pelos que vão pedindo De porta em porta o pão de cada dia, Tristes, que sempre a morte olham sorrindo Porque ella unicamente os allivia; Pelos que andam distantes Entre cruezas, fomes e perigos, Sentindo a nostalgia lancinante Da patria, da familia, dos amigos; E n'uma emoção crente, N'uma fé viva, forte e bemfazeja, A Deus supplico fervorosamente Que os guie, que os soccorra, que os proteja. De longe (N'UM BILHETE DE VISITA) Eis o pedido simples que te indico, Se acaso o teu amor do meu partilha: Ama-me com o amor que eu te dedico E pensa em mim, como em ti penso, filha. Manhã no campo Manhã no campo. O som, a luz, o aroma, a côr, Fundem-se alegremente em galas festivaes. A luz por todo o espaço, o aroma em cada flôr, O som na passarada, a côr nos vegetaes. É toda a natureza um extasis d'amor. Por sob o céo, do tom das rosas outomnaes, Concebe o lirio branco, a laranjeira em flôr, A abelha delicada, a pomba dos pombaes. O vento sul dissipa as brumas do nascente, E, como tem chovido a primavera inteira, Vae quasi a transbordar o leito da ribeira. O sol envolve o azul n'um longo beijo ardente E pelo espaço vão, em phantasiosas linhas, As bohemias d'além-mar, as meigas andorinhas... Adeus Ha de lembrar-me sempre a immensa magua Que vi transparecer nos olhos teus Ceruleos, languescentes, rasos de agua, Quando, poisando os labios sobre os meus, N'um demorado osculo celeste, Tremente e carinhosa me disseste Esta palavra:--Adeus!-- Afastei-me de ti e já distante Voltei-me para vêr-te inda uma vez Com o presentimento lancinante De que te não veria mais, talvez. Tornei-me então da lividez d'um monge, Quando vi alvejar nos dedos teus Um lenço branco repelindo ao longe: Adeus, adeus, adeus... Lyrica chineza I Lembra-me a hastea comprida Dos lyrios brancos em flôr, A elegancia apetecida Do seu corpo tentador. II Da sua côr singular Dá uma ideia leve A pallidez do luar, Batendo um floco de neve. III Nem o breu, nem o carvão, Nem a noite sem estrellas, Têm a densa escuridão Das suas tranças tão bellas. IV A sua bocca, a sorrir, Quando mostra os alvos dentes, Lembra perolas d'Ophir Entre dois rubís fundentes. V Das suas fallas suaves, Ao som commovente e lêdo, Cessam os cantos das aves E as folhas ficam de quêdo. VI O seu meigo olhar luzente Nem sei bem o que revela... Lembra um lago azul, dormente, O dulcissimo olhar d'ella. VII Da sua mão pequenina, Disse o imperador chinez: Dava o throno, o sceptro, a China, Pel-a beijar uma vez. VIII Quanto ao pé--que perfeição!-- Eu nem citarei mais factos: Cabem na palma da mão As fórmas dos seus sapatos. Perolas (A ABILIO DA FONSECA) Como os mergulhadores orientaes Que ao leito das ondinas vão roubar As perolas fulgentes, virginaes, Sondei o negro abysmo d'esse olhar. No pelago vastissimo do mar Mergulham elles, muita vez em vão; Pois eu, mulher, roubei ao teu olhar --A perola sem par d'esta paixão... Ignotus Ninguem sabia ao certo quem elle era, O bondoso pastor do presbyterio. A terra onde nasceu? D'onde viera? --Em vão se investigava tal mysterio. Andava sempre só. Pelos caminhos Encontravam-n'o, á tarde, muitas vezes, Parado, a ouvir a musica dos ninhos Ou as joviaes canções dos camponezes. O signal do seu livro de orações, Um dia que passava, absorto, a lêr, Cahiu perto d'um grupo d'aldeões. Um velho ao apanhar-lh'o reparára: --Era um retrato antigo de mulher D'uma belleza peregrina e rara. Nec semper São gemeas a Verdade e a Belleza, Disse-me um grande sabio n'outro dia. Se elle te conhecesse, com certeza, Tamanha falsidade não diria. Pois tu oh formosura incomparada A quem o meu amor ardente aspira, Sendo a propria Belleza humanisada --És a synthesis viva da Mentira! Combate Fazer versos delirantes Ao teu frio coração É como engastar diamantes N'um ad'reço de latão; Comtudo meus versos são Tiros certeiros, constantes, Ao teu frio coração, Aos teus desdens provocantes, N'esta singular batalha Não sei mesmo quem mais valha, Qual de nós seja a vencer. N'esta campanha secreta Entre o amor d'um poeta --E o desdem d'uma mulher! Nostalgica O amor é chamma enorme que allumia E nos consome e gasta o coração. Uma faúlha o ateia--a sympathia, Termina em labaredas--a paixão. Tanto é maior a luz que elle irradia, Quanto intensa é depois a escuridão. A indifferença é como a cinza fria Que fica d'essa lenta combustão. Senhora a quem amei perdidamente, Não me entristece o seu desdem mordente, Já nada me preoccupa, nem me importa... Porque, desde que vós me não amaes, O meu corpo doente não é mais --Que a tumba viva da minh'alma morta... Irmã da caridade (A HENRIQUE GOES) I Muitos, ao vel-a, estacam deslumbrados, Ficam como suspensos d'esse olhar Mais timido que os olhos dos veados, Mais candido que os raios do luar. Indifferente á propria formosura Segue, porém, impavida, serena, De habito negro como a noite escura E touca branca como uma açucena. A linha esculptural do seu perfil É d'uma correcção incomparavel. É alta, aristocratica, gentil, De brandos gestos e maneira affavel. E a Rubens, a Murillo, a Ticiano Excederia certamente em gloria Algum pintor que modelasse o arcano Do seu busto de virgem merencoria. II É fria como a neve sobre o polo E pura como uma alma de creança. Olha uma rocha como olha um collo; E-lhe estranha a tormenta ou a bonança. Nem lhe estremece o labio virginal Ao beijar a nudeza de Jesus, O grande martyr, sonhador ideal Que expira mansamente n'uma cruz. Quando morrer na cella do mosteiro, Á cova n'um esquife hão de leval-a; Serão então os braços do coveiro --Ultimos e primeiros a abraçal-a... Abril Enorme, arredondado, reluzente, Como se fôra um olho de Titan, O sol no azul olhava fixamente A natureza lubrica, pagã. E á luminosidade transparente Do céu avelludado da manhã, Um melro ia cantando alegremente Uma canção brejeira e folgazã. Nuvens de fumo tenues, vaporosas, Evolavam-se em fórmas caprichosas Das chaminés esguias dos casaes. E em choreação festiva, galhofeira, Ouvia-se nas bandas da ribeira Um concertante alegre de pardaes.. Aldeã Podem dizer talvez que ella não tem As fórmas peregrinas, delicadas, Das cortezãs de peito de cecem Que vão á noite aos bailes, decotadas. Podem dizer talvez, e dizem bem, Que ás suas faces tumidas, rosadas, Falta a côr macilenta que convém Ás virgens dos sonetos e balladas. Á elegancia doente e vaporosa Eu prefiro, comtudo, a fórma airosa Do seu corpo gentil de mulher sã; Por isso adoro e préso mais que tudo Os seus olhos dolentes de velludo, Os seus labios vermelhos de romã. Amor omnia vincit (A GARCIA MARQUES) I O amor não se confrange, O amor não se combate. É como a luz do sol que tudo abrange, É como um raio audaz que tudo abate: É como em terra fecundante a flôr, Viceja e medra, embora se não trate. Não se confrange o amor, O amor não se combate. II O amor não se commenta, O amor não se discute. Embalde imploro á minh'alma sedenta Que me oiça, que me attenda, que me escute Em vão busco acalmar o louco ardor D'esta paixão lethal que me atormenta. Não se discute o amor, O amor não se commenta. A uns annos Se eu fosse rei, Senhora, n'este dia O pagem mais gentil da minha côrte, Como tributo d'amisade, iria A esses pés miniaturaes depôr-te Um brinde sem rival, d'alta valia; Mas sabes bem que não sou rei. De sorte Que não pode ir, como eu desejaria, O pagem mais gentil da minha côrte Offerendar-te joias de valia. Em vez do brinde, mando todavia Um ramo de lilazes e cecens. E pelo pagem loiro, alvinitente, Mando, Senhora minha, unicamente Este soneto a dar-te os parabens. Struggle for life (A ALBERTO SILVA) «Luctar, luctar!» dizeis-me vós. «A lucta É inherente á propria natureza», Mas qual é a victoria absoluta N'esta guerra sem treguas, sempre accesa! Hája quem venha á barra, quem discuta E me combata e dome esta incerteza. Sinto a minha alma inerme, irresoluta, Cheia de abatimento e de fraqueza. Eu luctaria com denodo, sim, Se á lucta visse um terminus, um fim; Mas qual de vós que ha tanto batalhaes Com animo valente e sanha viva, Poude alcançar ou conseguir jámais A victoria final--a decisiva? Ponto final (N'UM ALBUM) Pediste-me um soneto delicado, Exquisito, gentil, galanteador, Feito com versos d'oiro e cravejado Com rimas de finissimo lavor. Ora eu, confesso aqui o meu peccado, Nunca tive feição de trovador, Acho o lyrismo d'album requintado, Banal, elogioso, sem valor. Aqui me tens; jámais falto ás promessas. Exijo, pois, de ti que não esqueças, Em troca, filha, este pedido meu: Que para ennobreceres o soneto, Venhas fechar o ultimo tercetto --Com o ponto final d'um beijo teu. El punto final (TRAD. DE JOSÉ DE SILES) Pedisteme un soneto delicado, exquisito, gentil, galanteador, hecho con versos de oro, y cincelado con rima de finissima labor. Ahora bien, yo confieso mi pecado; nunca tuve afición de trovador, y detesto al poeta almibarado que en albums habla de banal amor. Cedo, no obstante. Pero, no te azores si pretendo de ti que colabores, y que en premio al trabajo que rehuyo, para que algún valor tenga el soneto, te dignes terminar este terceto... con el punto final de un beso tuyo. Indice MUSA CERULA Dedicatoria Pag. 9 Profissão de fé " 11 A minha mãe " 15 Impressões d'ella " 17 O matrimonio " 19 Dolorosa " 21 Sonho de nupcias " 23 Serenata " 25 A Alberto de Oliveira " 29 Perdularia " 31 Em wagon " 33 Blasphemia santa " 35 Á sobremesa " 37 Cármen " 41 Fervet amor " 43 Cantares " 45 Senhor Doutor " 49 Ritornello " 51 Esboceto " 53 Consummatum est " 55 I-- " 57 II--Oração " 59 De longe " 63 Manhã no campo " 65 Adeus " 67 Lyrica chineza " 69 Perolas " 73 Ignotus " 75 Nec semper " 77 Combate " 79 Nostalgica " 81 Irmã de caridade " 83 Abril " 87 Aldeã " 89 Amor omnia vincit " 91 A uns annos " 93 Struggle for life " 95 Ponto final " 97 El punto final " 99 Acabou de imprimir-se este volume aos 6 de abril de mil oitocentos e noventa e quatro na typographia de José Joaquim dos Reis Leitão, Rua do Norte, 6 Coimbra. --- Provided by LoyalBooks.com ---